Lei 10.639/03: pesquisa inédita traz práticas inspiradoras de seis municípios que promovem o ensino de história, cultura africana e afro-brasileira
Estudo de Geledés e Alana reúne os aprendizados e desafios na aplicação da Lei 10.639/03 em Belém (PA), Cabo Frio (RJ), Criciúma (SC), Diadema (SP), Ibitiara (BA) e Londrina (PR) e conta com prefácio da professora Nilma Lino Gomes
Fortalecer equipes que atuam por uma educação antirracista, garantir previsão orçamentária e realizar formação continuada de professores são algumas das ações feitas por seis municípios que se destacaram na promoção de um ensino antirracista. Isso é o que mostra a pesquisa "Lei 10.639/03 na prática: experiências de seis municípios no ensino de história e cultura africana e afro-brasileira", que traz exemplos de Belém (PA), Cabo Frio (RJ), Criciúma (SC), Diadema (SP), Ibitiara (BA) e Londrina (PR).
A obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas públicas e privadas entrou em vigor no ano de 2003, materializada pela Lei 10.639/03, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Essas seis redes tiraram a legislação do papel incentivando brincadeiras e jogos africanos e afro-brasileiros em aulas de diferentes áreas do conhecimento, promovendo a leitura de autores negros, com foco em heróis e personalidades negras regionais e nacionais, e até mesmo elaborando um censo, que permite compreender a diversidade étnico-racial das turmas e trabalhar em sala de aula a partir dessa perspectiva.
A pesquisa, uma realização de Geledés Instituto da Mulher Negra e Instituto Alana, marca a apresentação da fase qualitativa do estudo. Na etapa anterior, lançada em abril de 2023, a pesquisa quantitativa “Lei 10.639/03: a atuação das Secretarias Municipais de Educação no ensino de história e cultura africana e afro-brasileira" apontou que 71% das Secretarias Municipais de Educação — ou seja, 7 em cada 10 — descumprem a principal lei de combate ao racismo nas escolas.
O prefácio da nova etapa é assinado por Nilma Lino Gomes, professora titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e ex-ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e do Ministério das Mulheres, Igualdade Racial, Juventude e Direitos Humanos.
Entre os principais aprendizados comuns ao efetivar a lei, os municípios observaram uma série de mudanças e avanços importantes, como a redução de barreiras frente às ações e projetos antirracistas e também da resistência da comunidade escolar ao tema. Isso apoiou tanto o trabalho de professoras e professores, quanto à garantia do direito de crianças e adolescentes de se reconhecerem como negros e despertarem para o orgulho frente à sua identidade, cultura e religião.
“À medida que aprendem sobre si, eles ganham referências de personalidades negras e passam a se sentir representados, o que reduz a discriminação racial dentro das escolas, melhorando o relacionamento entre os estudantes. Muitos deles passam a ter mais ferramentas e condições de combater o racismo e podem identificar e denunciar casos de bullying e violência racial nas escolas. Além de entender que essas atitudes são criminosas, eles passam a saber que terão apoio e acolhimento escolar. Em Diadema, por exemplo, as aulas de letramento étnico-racial fizeram a autodeclaração como preto ou pardo subir de 39% para 65,7% entre os adolescentes, numa comparação entre uma avaliação feita no início e no fim do ano letivo”, conta Beatriz Benedito, analista de políticas públicas do Instituto Alana.
Na pesquisa, uma professora da rede municipal de Ibitiara (BA) conta que a educação antirracista contribui no fortalecimento da autoestima das crianças da escola. ”Eu percebo crianças mais felizes, interagindo mais e melhor com o outro, respeitando mais seu coleguinha. Hoje, por exemplo, é comum a criança chegar com seu cabelo afro e cacheadinho solto na escola e ninguém fazer chacota”, afirma.
O racismo religioso é um dos maiores obstáculos para a efetivação da lei, sendo mencionado por todas as redes entrevistadas. Conforme a pesquisa qualitativa, o preconceito com as religiões de matriz afro-brasileira é algo presente na comunidade escolar, especialmente entre os familiares dos estudantes, que se queixam nas escolas de que não querem que seus filhos aprendam conteúdos relacionados ao tema.
A análise dos casos mostra ainda que é fundamental que haja continuidade de projetos, e não apenas ações esparsas em datas comemorativas, como o 20 de novembro, em que se celebra o Dia da Consciência Negra. “A segunda fase da pesquisa é muito importante para que possamos entender quais são os desafios específicos e os caminhos trilhados por diferentes secretarias que aplicam de maneira consistente ações por uma educação antirracista. Quanto mais essas atividades envolvam a todos, estudantes, profissionais de ensino e familiares, mais os resultados aparecem de forma sólida e duradoura, contribuindo na formação de pessoas que se engajam na luta antirracista no seu dia a dia”, avalia Beatriz.
Outros dos principais desafios identificados nos municípios está na ausência de formação adequada durante a graduação dos profissionais de educação, assim como a baixa oferta de cursos de formação continuada, e também a resistência com o ensino das relações étnico-raciais por parte de atores dentro das escolas e de familiares dos estudantes. A relutância está relacionada, na visão dos entrevistados, a preconceitos enraizados e pouco conhecimento sobre as perspectivas raciais propostas na lei.
“Esses indicativos dimensionam como o artigo 26A da LDB diz respeito e fortalece a todas as pessoas, negras e não negras. Trata-se da garantia de direito ao conhecimento que reconstitui a formação plena do país, em plano histórico, econômico, intelectual, social, entre outros. Mais do que referências para as pessoas negras, são conhecimentos que dão oportunidade para que as pessoas brancas vejam o mundo em outra perspectiva, para além da eurocêntrica ou da branquidade. Isso é preponderante para as relações raciais, dentro e fora das escolas”, considera Tânia Portella, consultora de Geledés Instituto da Mulher Negra.
As seis redes apresentadas no estudo cobrem diversas realidades de municípios no Brasil, como porte e localização (equilibrando municípios pequenos e grandes, regiões metropolitanas, capital e interior, por exemplo), e a diversidade de regiões. Na região Centro-Oeste, a única não representada nesta etapa, apenas 17% dos municípios respondentes realizam ações consistentes e perenes, o pior resultado regional em relação à implementação da lei. Esse cenário inviabilizou a realização do aprofundamento de estudos de caso na região.
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